Tuesday, July 21, 2015

A ‘ficção climática’ - ou cli-fi - conta as histórias mais importantes de nossos tempos

A ‘ficção climática’ - ou cli-fi - conta as histórias mais importantes de nossos tempos

Desdobramento da ficção científica, o cli-fi já é um gênero independente que ocupa salas de cinema e livrarias com mensagem clara, sedutora e alarmante sobre as mudanças climáticas

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Maria Bitarello - Planeta Sustentável - 03/02/2015
Reprodução
"Ao contrário do gênero sci-fi (ficção científica), o cli-fi está mais para advertência do que para descoberta. Não há espaçonaves pairando o céu; nem relógios marcando a 13a hora. Ao contrário, muitos dos horrores descritos já são estranhamente familiares". A frase é do jornalista Rodge Glass em reportagem para o The Guardian sobre esse gênero literário e cinematográfico que tanto cresce no momento. Cli-fi é uma espécie de filhote da ficção científica e vem trazendo atenção e um certo alarme em torno dos riscos advindos das mudanças climáticas. Então, não é sempre que histórias nessa linha se passam no futuro. Muitas vezes, elas acontecem aqui e agora, no nosso presente.

Vamos ilustrar com exemplos. Já viu o recente Interestelar, do diretor britânico Christopher Nolan? Então, é cli-fi. E A estrada, livro de Cormac McCarthy adaptado aos cinemas por John Hillcoat? Também é. Os filmes Depois da Terra, de M. Night Shyamalan, e Noé, de Darren Aronofsky, e os livros Solar, de Ian McEwan, e The year of the flood, de Margaret Atwood? Todos se encaixam nesse gênero. E aonde para essa lista? Não se sabe, ela continua crescendo, mas parece consenso que ela começa com The drowned world, romance de J.G. Ballard lançado em 1962 e precursor do gênero. O termo cli-fi só apareceu muito depois, em 2008, quando foi cunhado e popularizado pelo ativista climático americano Danny Bloom.

A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS PÓS-APOCALÍPTICAS
A narrativa clássica do cli-fi é bem simples e, digamos, plausível (pra não dizer provável). O comportamento nocivo do homem em relação à Terra e a seus recursos energéticos finitos provoca mudanças no clima, e estas, por sua vez, trazem consequências imprevisíveis e violentas. Enchentes, secas, extinção de espécies, terremotos e furacões. Com frequência, esse cenário apocalíptico ou pós-apocalíptico já é uma realidade nas histórias do cli-fi, não apenas uma ameaça ou algo reversível. E, para tornar esse tema-catástrofe mais interessante e menos sombrio, o que os autores que se dedicam a ele procuram fazer é aproximar-nos - nós, leitores e espectadores - de um ou mais personagens e nos mostrar, em detalhes, como será esse tal de fim dos tempos na Terra.

Nos Estados Unidos, a Universidade do Oregon, em Eugene, já criou uma disciplina chamada As Culturas das Mudanças Climáticas, recheada basicamente de cinema, literatura, fotografia e arte cli-fi. Como cientistas não costumam ser bons contadores de histórias - salvo raríssimas exceções do calibre de Carl Sagan -, a universidade optou por ater-se aos olhares das artes sobre o aquecimento global e suas repercussões, nada de textos científicos.

E os autores contemporâneos do gênero parecem ter aceito a incumbência de carregar a tocha do conhecimento para as gerações futuras. Daniel Kramb, autor de From here, acredita que "as mudanças climáticas podem ser o maior tema literário do século 21". E Nathaniel Rich, autor do romance Odds against tomorrow, diz que "precisamos de um novo tipo de romance para falar de uma nova realidade".
E quem sabe a contribuição mais valiosa do cli-fi não seja a releitura dos mitos tradicionais em uma roupagem bem atual e século 21?

APRENDENDO COM MITOS E HERÓIS
A linha narrativa das histórias de cli-fi é familiar porque está por aí há muito tempo. Noé já estava lidando com a ira divina dez gerações após a vida de Cristo. E os mitos sobre os desmandos dos homens diante da natureza abundam em transmissões orais de povos primitivos das Américas à Ásia. Os mitos e histórias de fundação, conforme nos explicam os mitólogos da linha de Joseph Campbell, nos contam de quem nós somos. De onde viemos e porque viemos parar aqui, porque fazemos as coisas de certa maneira. São muitos os mitos. Primitivos, africanos, orientais, cristãos, indígenas. E essas histórias são um mapa para nossa conduta moral, social, ética.

Como reagiremos diante do que estamos vivendo hoje, no presente, é uma especulação sem precedentes para nós. Nossa influência sobre as mudanças climáticas e os efeitos que elas já estão tendo sobre nosso Planeta, nossas vidas e até nossos corpos são não apenas poderosos, mas incontroláveis e inéditos. E é nessas horas que recorremos aos mitos. A Noé. A Prometeu, que roubou o fogo dos deuses. A Ícaro, que desobedeceu as leis e chegou perto demais do Sol. A Antígone, que foi lá e enterrou o irmão sem poder.

Tim Jackson disse num debate sobre seu livro - Prosperidade Sem Crescimento, publicado com o selo Planeta Sustentável -, em São Paulo, que, não, não se sente desencorajado diante de tamanha tarefa (a de combater as mudanças climáticas), muito pelo contrário, sente-se privilegiado de fazer parte desse momento histórico quando poderemos, todos nós, mostrarmos do que somos capazes. Grandes desafios abrem caminho para grandes atos. Ou seja, podemos ser todos heróis. O herói, segundo nos contam as histórias, não tem nada de especial. Ele é você, sou eu. O que o distingue dos demais é a aceitação do desafio que a vida lhe apresenta, a coragem em fazer a travessia e a perseverança de voltar para contar aos demais. Às vezes o herói não volta, vira mártir. Mas sua história permanece.

Então, quem sabe o papel do cli-fi seja o de contar nossa história, de nossa espécie, nesse momento tão novo da nossa vidinha na Terra. A história dos heróis. Afinal, essa é uma dessas histórias que merece ser contada.

CLIFFIES
O mesmo Danny Bloom que criou o termo cli-fi é o responsável pelo primeiro Cli-Fi Movie Awards, ou Cliffies, como foi carinhosamente apelidado o evento cuja primeira edição ocorrerá em 15 de fevereiro de 2015 (uma semana antes da entrega do Oscar). Começando este ano, os Cliffies premiarão, todos os anos, os melhores filmes do gênero em dez categorias distintas. Veja a lista de indicados.

Quer saber mais sobre o tema? Visite a página cli-fi do Facebook e consulte a base de dados do site eco-fiction.

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